domingo, 4 de abril de 2010

Maria do céu

Maria do céu
por Nícollas R. Rudiner


Era ela, Maria. Maria como muitas Marias que existem por ai, mas não era Maria Aparecida, nem de Lourdes, muitos menos Amélia ou de Fátima. Nasceu Maria e assim estava predestinada a ser o resto da vida.
Maria era negra. Mas negra mesmo, daquelas de ofuscar a vista. Tinha as ancas largas como as de um caminhão e uns braços fortes como de um super herói de desenho animado. Braços e ancas que já levaram muita surra da vida.
Maria apanhou, apanhou feio: da vida, do marido e dizem que até dos filhos.
Maria era lavadeira. Passava o dia com a barriga gorda encostada no tanque: lavando, lavando e lavando. Maria só não conseguia lavar a própria alma e tirar as amarguras e tristezas que estavam impregnadas dentro de si.
Maria era da favela. Morava no alto do morro. Lá nasceu e pouco conhecia o que se passava além dele, tamanha era sua pobreza. Maria era pobre demais: não tinha carinho, não tinha beleza, não tinha saúde.
Maria era rica. Muito rica. Vendia bondade, vendia força, exacerbava boa vontade, borbulhava humildade e vivia carregada pela esperança.
Maria ia vivendo das migalhas que a vida lhe fornecia. Comia quando dava e quando sobrava. O suor do taque que alimentava a boca dos três filhos e do marido, que era um alcoólatra dos grandes e batia em Maria, roubava seu dinheiro úmido de dentro do avental e ia comprar a pinga mais barata do boteco do morro.
Maria acordou numa manha chuvosa de quinta-feira, olhou para o tanque cheio de roupa e para os dedos das mãos sangrando, tamanha era a micose que possuía, e resolveu de uma vês por todas por um ponto final em seu sofrimento.
Abandonou filhos e marido e foi embora com uma muda das poucas roupas que possuía. Foi ver o que acontecia além do morro.
Era como ver um selvagem na civilização. Até o som do mar era um pouco estranho para a velha Maria.
Maria estava maravilhada, emocionada, feliz, borbulhando alegria de estar conhecendo o novo, de ver os carros, as motos, os letreiros coloridos, as crianças nas praças. Vai Maria, vai viver. Maria andou, andou, pulou, girou. CUIDADO MARIA!OLHA O CARRO!
O carro pegou Maria pelas ancas e a jogou alguns metros a frente. Maria bateu com a cabeça na guia e deixou o asfalto preto, como ela, ficar manchado de um sangue vermelho e triste.
Era a vida de Maria indo embora, ali, no meio-fio. Meia dúzia de pessoas olhavam-na perder a vida aos poucos e presenciavam seus últimos momentos de sofrimento de uma vez por todas. Maria não ira mais apanhar, não iria mais chorar; muito menos iria acordar dolorida e ir para o tanque. Maria tinha ficado livre; livre de si própria. Livre da sua própria desgraça diária.
Maria, Deus foi bom com você. Te levou para perto dele e longe da sua desgraça. Maria; sua morte te salvou e tirou o peso de suas costas de ser gauche na vida. Você não é apenas Maria. Maria, você agora, é Maria do céu.

 


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